Teoria
da Impermeabilidade jurídica da pessoa colectiva:
Tendo
nós já estudado a organização administrativa, isto é, como é que na prática
está estruturada (administração directa, indirecta, autónoma e independente) e
que órgãos é que a compreendem, resta perceber como é que na teoria se concebe
a organização administrativa – os seus elementos, os sistemas existentes e os
princípios orientadores.
No
presente texto referir-me-ei apenas a um dos elementos da teoria da organização
administrativa: às pessoas colectivas e aos seus órgãos, procurando explicar a
teoria da impermeabilidade jurídica e a porquê de hoje já não ter
aplicabilidade.
Por
“pessoa colectiva pública” entende-se “pessoas colectivas criadas por
iniciativa pública para assegurar a prossecução necessária de interesses
públicos, e por isso dotadas em nome próprio de poderes e deveres públicos”
(Professor Diogo Freitas do Amaral).
Já
os órgãos são os centros de formação e imputação da vontade da pessoa
colectiva.
A
questão que vos trago prende-se com o facto de se discutir se são de considerar
jurídicas ou ajurídicas as relações que se estabelecem dentro da pessoa
colectiva.
A
primeira tese (em termos cronológicos) foi a designada “teoria da
impermeabilidade jurídica, formulada por Georg Jellinek, que, nas palavras do
Prof. Pedro Gonçalves, defende o carácter unitário e indivisível da
personalidade jurídica pública e entende as relações intra-orgânicas como
relações da pessoa colectiva consigo mesma.
Jellinek
recusava-se a admitir a possibilidade de existência de relações internas dentro
da mesma pessoa colectiva, pois isso era aceitar que na mesma haveria vários
órgãos que formavam a sua vontade, ou seja, que numa personalidade jurídica una
(construída à semelhança da pessoa singular, em que à partida só haverá uma vontade)
era possível ter várias vontades, por vezes contraditórias, existindo a
possibilidade de serem impugnadas internamente (pelos órgãos da mesma).
Lembro
que é da opinião de vários autores, entre eles Marcelo Caetano, que a
personalidade jurídica é fictícia, quer a dos indivíduos, quer a das pessoas
colectivas, assim como a própria pessoa colectiva. Mas mesmo que só se
aceitasse que só a pessoa colectiva é fictícia, estando no campo de ficções não
vejo o porquê de não se aceitar a relativização da pessoa colectiva.
A
partir dos anos 50 esta teoria começou a ser contestada principalmente por duas
razões:
- Se na administração do Estado liberal
deparávamo-nos apenas com uma pessoa colectiva pública, o Estado, (há quem diga
que o “fisco” era outra…) com o processo da descentralização (e com o
surgimento de uma Administração prestadora [Estado Social]) surgiram
administração indirecta e autónoma, abrangendo ambas várias pessoas colectivas
públicas (sob a forma púbica ou, mais recentemente, sob a forma privada) que
prosseguiam também o interesse público ou interesse próprio local;
- Para além de se terem criado várias pessoas
colectivas públicas estas passaram a conter, na sua maioria, não só um órgão,
mas vários que, refere o Professor Pedro Gonçalves, embora prosseguindo o que
foi definido como interesse público, podem as suas actuações (definidas com
base nas suas competências), por vezes, não se compatibilizar ou harmonizar, ou
pode um órgão extravasar o âmbito da sua competência, ingerindo-se na de outro.
Pelas
razões apontadas, a teoria da impermeabilidade jurídica deixou de ser capaz de
explicar estes novos fenómenos, passando-se a aceitar que a existência de
relações dentro da mesma pessoa colectiva – relações inter-orgânicas – se
encontrava no espaço pertencente ao Direito, sendo, como tal, jurídicas.
Surgia
assim um novo ramo do Direito Administrativo (se é que assim lhe posso chamar),
um direito que rege as relações internas (as que se estabelecem entre os órgãos
da mesma pessoa colectiva), a par daquele que rege as relações externas (as
relações que a Administração estabelece com os particulares ou mesmo com outras
pessoas colectivas públicas).
A
conceber relações internas entres os órgãos poderíamos cair no outro extremo, os
órgãos das pessoas colectivas, teriam também personalidade jurídica. É esta a
conclusão a que chega uma autor italiano (Salvatore Foderaro), se bem que a personalidade jurídica que o autor
reconhece aos órgãos é limitada, já que perante a pessoa colectiva à qual o
órgão pertence e face a terceiros (sejam eles particulares ou outras pessoas
colectivas públicas ou privadas) esta não existe. Somente face aos outros
órgãos da mesma pessoa colectiva é que é possível falar em personalidade jurídica do órgão.
A
solução diferente, chega o Professor Pedro Gonçalves:
afirmando que os órgãos são sujeitos de direito, isto é, “sujeitos de ordenação
e imputação final (não apenas transitória) de poderes e deveres”. Para o autor,
o facto de reconhecer certas entidades como sujeitos aos quais é possível
imputar direitos e deveres não é sinónimo de atribuição de personalidade
jurídica, “pois que a subjectividade jurídica pode existir em substratos
despersonalizados”.
De
facto até em direito privado encontramos sujeitos com capacidade mas sem
personalidade, é o caso das associações não reconhecidas às quais o CC
reconhece nos artigos 196º a 198º um fundo comum, similar a um património próprio da associação.
Mas
também em direito público é possível achá-los: Vital Moreira, refere que apesar
de certos organismos não estarem dotados de personalidade jurídica, podem ter
autonomia orgânica, financeira, administrativa e até uma certa autonomia de
decisão. Como consequência, por expressa determinação legal têm um “património especialmente
afecto, pessoal adstrito, capacidade judiciária, orçamento, contas e receitas
próprias, uma esfera de acção própria” e a possibilidade de praticar actos
administrativos definitivos.
“Em
certo sentido, tais organismos funcionam como se tivessem individualidade
própria”- (Vital Moreira).
Também
a doutrina alemã, como chamam a atenção os Professores Vasco Pereira da Silva
(aulas teóricas), Pedro Gonçalves e Vital Moreira, distingue capacidade de
personalidade.
Partindo
desta construção os órgão não têm personalidade jurídica (conceito que perde
operatividade), mas sim capacidade jurídica parcial, querendo significar que os
órgãos:
- só são titulares de poderes e deveres que
lhes sejam especificamente atribuídos pela Ordem jurídica;
- e que a sua capacidade é meramente interna,
“uma vez que são titulares de poderes e deveres apenas em face de outros órgãos
da mesma pessoa colectiva”. (para efeitos o art.4º/1 j) ETAF)
Desta
forma, a partir de 2004, é possível que órgãos de uma pessoa colectiva impugnem
actos de outra pessoa colectiva, por via do artigo 4º/1 alínea j) do ETAF que
estatui o seguinte:
“Compete
aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que
tenham nomeadamente por objecto:
(…)
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas
de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes
cumpre prosseguir”
Mas
já antes (a partir da década de 80) a ordem jurídica portuguesa permitia ao
particular impugnar actos de um órgão de uma pessoa colectiva.
Assim
há então que separar:
1. A possibilidade de serem os
órgãos de uma pessoa colectiva a impugnar os actos de outros órgãos da mesma;
2. A possibilidade do particular
impugnar o acto praticado pelo órgão da pessoa colectiva.
Quanto
ao primeiro ponto há ainda a dizer o seguinte:
Está
regulado no art.4º/1 alinea j) do ETAF, e 10º/6 do CPTA (sobre a legitimidade passiva nos litígios – “Nos
processos respeitantes a litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva, a
acção é proposta contra o órgão cuja conduta deu origem ao litígio”), que qualquer litígio ou
qualquer conduta que o provoque permite aos órgãos recorrerem judicialmente, o
que engloba quer acções quer omissões.
Os
litígios que ocorrem podem ser triangulares ou bipolares/dialógicos. Os
primeiros surgem quando o acto de um órgão está direccionado para um terceiro,
mas um outro órgão da mesma pessoa colectiva reclama que é sua a competência
para praticar tal acto (são os chamados conflitos positivos de competência); ou
quando, para que um acto direccionado a um terceiro seja eficaz ou válido, é
necessária a actuação conjunta de dois ou mais órgãos e um deles se recusa a
colaborar. Os segundos surgem exclusivamente entre os órgãos da mesma pessoa
colectiva onde se estabelecem relações de supremacia ou de cooperação.
Os
únicos órgãos que podem recorrer, de acordo com a interpretação que Professor
Pedro Gonçalves faz o art.4º/1 j) do ETAF são aqueles que são titulares de
direitos subjectivos, que se caracterizam por:
· Serem
independentes, no sentido de não pertencerem a nenhuma estrutura hierárquica,
pois nesse caso os litígios que surgissem seriam resolvidos por decisão do
superior hierárquico;
·
Prosseguirem
interesses que sejam tutelados pela ordem jurídica como interesses próprios do
órgão e que correspondem a interesses específicos de uma determinada(s)
categoria(s) de pessoa(s).
Este
direito subjectivo de que são titulares determinados órgãos é um direito ao
exercício da sua competência (direito a que faça uso desta sem qualquer
impedimento ou perturbações ilegítimas provocadas por outros órgãos); e cujo
âmbito de eficácia é meramente interno – o direito de um órgão face a outro
órgão da mesma pessoa colectiva.
Chama
a atenção o Professor Domingos Farinho que esta possibilidade não se coaduna
com a principal razão da relativização da pessoa colectiva, já que esta teve
como causa principal a necessidade de assegurar a protecção dos direitos dos
particulares.
Na
realidade o facto de um órgão da mesma pessoa colectiva poder impugnar actos de
um outro órgão da mesma pessoa colectiva, ao invés de proteger o particular,
pode prejudica-lo: se o particular tinha já adquirido algo por via de um acto
administrativo que posteriormente é impugnado, vê-se ou pode ver-se despojado
do que tinha já adquirido.
O
preceito visa assegurar o direito do órgão ao exercício da sua competência, na
perspectiva do Professor Pedro Gonçalves; mas também assegurar o princípio da
legalidade que, julgo, embora naquela situação possa não beneficiar o
particular, prosseguirá o interesse público, no sentido de que este está também
interessado que a legalidade seja observada.
Quanto
ao segundo ponto:
A
meu ver, se esta teoria que relativiza o conceito de pessoa colectiva pública e
subjectiviza toda a administração, pode ter como desvantagem uma possível perda
de eficácia, face à construção da impermeabilidade jurídica, já que os
procedimentos que têm de ser atendidos pelos órgãos são imperativos, poderão
tornar mais demorada a actuação da Administração, nem por isso deixa de ser
mais positiva.
Como
refere o Professor Domingos Farinho, seguiu-se esta via para a PROTECÇÃO DO
PARTICULAR, que de facto está mais assegurada agora:
Obrigando
a Administração, nas suas relações internas, a actuar num espaço regulado pelo
Direito e não totalmente desregulado juridicamente (não quer dizer que não
houvessem talvez normas informais que indicassem aos órgãos como agir), o
particular tem agora a certeza que a actuação dos órgãos da pessoa colectiva
são legítimos e legais, sabendo a que órgão é que se tem de se dirigir se
quiser ver satisfeita alguma necessidade sua, ou se quiser impugnar um acto do
mesmo.
Concluindo,
o facto de se ter ultrapassado a impermeabilidade jurídica da pessoa colectiva, permitiu
vir proteger o particular numa dupla vertente: este é protegido por poder
questionar ou impugnar o acto do órgão (colocando a questão ao próprio autor do
acto); e é-o também, embora não tão directamente, a meu ver, quando o ETAF, no
art.4º/1 j), permite órgãos impugnarem actos de órgãos da mesma pessoa
colectiva, assegurando o princípio da legalidade.
Ana Catarina Melícia, nº 21921