Começo por dizer que a ideia para
este comentário surgiu após a realização do debate (no passado dia 9 de
Novembro), em que se discutiu a proibição da criação fundações públicas de
direito privado, que consta do artº57 da recente Lei-Quadro das Fundações, de 9
de Julho deste ano. Interessei-me pelo assunto e decidi aprofundar a pesquisa
já feita por mim e pelas minhas colegas.
Primeiramente, há lugar a uma
referência à regulação jurídica da matéria em questão. A matéria das fundações
vem primacialmente regulada em dois diplomas: a Lei 3/2004 ou Lei-Quadro dos
Institutos Públicos (doravante denominada LQIP) e a recente Lei 24/2012 ou Lei-Quadro
das Fundações (doravante denominada LQF). A própria LQF dá-nos um conceito de
fundação, como reflecte o seu artº3: fundação é uma pessoa colectiva sem fins
lucrativos, dotada de um património suficiente e irrevogavelmente afectado à
prossecução de um fim de interesse social. Fica também presente o conceito de
fundação pública, tal como nos é dado pela Prof. Maria João Estorninho: “fundação
pública caracteriza-se, tradicionalmente, por ser uma pessoa colectiva pública,
dotada de autonomia administrativa e financeira, na qual está essencialmente em
causa um património afectado à prossecução de determinados fins públicos”. Aquilo
que distingue a fundação pública dos outros tipos de institutos públicos (ie.,
os serviços personalizados e os estabelecimentos públicos) é, essencialmente,
segundo esta autora, o facto de a fundação assentar num património e de a sua
existência se resumir à administração desse mesmo património, vivendo dos
resultados dessa gestão financeira.
Cabe, em segundo lugar, uma
contextualização do problema: até há poucos meses atrás, o Estado podia, na
prossecução do interesse público e no âmbito da administração indirecta,
socorrer-se de duas formas fundacionais: a fundação
pública de direito público (que, segundo o artº4/1/b) da LQF, são fundações
criadas exclusivamente por pessoas colectivas públicas, nos termos da LQIP) e a
fundação pública de direito privado
(que, segundo o artº4/1/c) da LQF são fundações criadas por uma ou mais pessoas
colectivas públicas, em conjunto ou não com entidades privadas, desde que
aquelas, isolada ou conjuntamente, detenham uma influência dominante sobre a
fundação). Existe também uma terceira forma fundacional, mas que nada tem a ver
com o Estado-Administração: a fundação
privada, que, segundo o artº4/1/a) da LQF, é criada por uma ou mais pessoas
colectivas privadas, em conjunto ou não com pessoas colectivas públicas, mas
desde que estas últimas não detenham sobre a fundação uma influência dominante.
Ora, com a nova LQF, a possibilidade de criação de fundações públicas de
direito privado deixou de existir (artº57 da referida Lei), sendo que algumas
das fundações públicas de direito privado já existentes foram propostas a
extinção, enquanto as restantes se mantêm, devendo adaptar os seus estatutos à
LQF. Após isto, a questão que se coloca é: terá
esta sido a solução mais adequada?
Para tratar este tema, é, antes de
mais, necessário perceber as razões que levam a Administração Pública a
escolher meios privados de actuação. Podem apontar-se, prima facie, as seguintes vantagens: maior flexibilidade e
maleabilidade (contrariamente à burocratização das normas de direito público);
especialização técnica que culmina numa melhor garantia do interesse
público/social; maior apoio financeiro que colmata a (recorrente) falta de
verbas das pessoas colectivas públicas; entrave à total influência política
(nas palavras do Prof. João Caupers, reduz-se “a administração pública como
instrumento do poder político”). A Administração tem de desempenhar
determinadas funções, no âmbito de um Estado Social; nos últimos anos, entendeu-se
que, pela enumeração de vantagens acima referidas, era inevitável o recurso pelas
entidades públicas aos meios privados no desempenhar dessas mesmas funções.
Dá-se, quando assistimos a este fenómeno, à fuga para o direito privado. Todavia,
a utilização de direito privado, apesar de con
ferir maior flexibilidade e maleabilidade – o
que representaria uma tremenda mais-valia em termos de maximização da eficiência
-, foi e é pensada como um estratagema de fuga “àquilo que se designa por dados
fundamentais da Administração Pública”, como o “controlo ministerial e
parlamentar”, nas palavras do Prof. Vital Moreira. Um dos argumentos usados no
debate – e defendido também pela contraparte -, foi o de que seria proibido utilizar
este esquema e que a solução necessária consistiria numa reformulação do
direito administrativo – argumento referido, aliás, pelo Prof. Freitas do
Amaral. No debate, o meu grupo defendeu que enquanto não se procede a tal
reforma e visto que há interesses públicos e sociais que, no entretanto,
necessitam ser protegidos, a solução seria utilizar o direito privado. Mas até
que ponto é este fenómeno – que pode ser encarado como um primo afastado da
fraude à lei –, de facto, aceitável?
O número de fundações criadas por
entidades públicas mas com base no direito privado aumentou bastante, nos
últimos anos. A Prof. Maria João Estorninho reflecte acerca da generalização do
fenómeno de fuga para o direito privado no campo fundacional, considerando que
tal fenómeno deveria ser excepcional e não tomado como regra. A autora fala, à
semelhança de outros autores já referidos, da necessidade de se encontrar um
regime de direito público mais apertado (especialmente “no que toca a
requisitos de constituição de tais fundações e aos mecanismos de controlo da
sua actuação” nas palavras da Professora), como alternativa à medida radical de
proibição completa de criação de fundações públicas de direito privado. De
facto, na minha opinião, esta fuga não pode ser considerada aceitável, especialmente
quando se torna prática usual, exactamente na medida em que foge a mecanismos
de controlo que são típicos nos regimes de direito público e que, como é
evidente, existem para proteger interesses para os quais os regimes de direito
privado não foram desenhados. Na linha da Professora, julgo que se deve
“defender uma noção de fundação pública confinada aos quadros do Direito
Público”.
Passemos agora para outro ponto. De
facto, atendendo às ideologias políticas dos actuais governantes e à situação
actual do país (particularmente num contexto de reestruturação da Administração
Pública), dir-se-ia que a medida do artº57 LQF faz sentido, visto que deixa a
prossecução do interesse social (enumerado no artº3 da LQF) a dois tipos: à
fundação pública de direito público e à fundação privada (acabando, assim, com
a dúvida do possível tertium genus suscitada
pela aplicação de direito privado por entidades públicas, com as vinculações
que isso implica). É deixada aberta a possibilidade de o Estado prosseguir
interesse público-social por via fundacional através das fundações públicas stricto sensu – apesar de até hoje não o
ter feito e de, na prática, não existir qualquer diferença de regime entre as
fundações públicas de direito público e os serviços públicos personalizados,
como consta da LQIP – e é deixada também aberta a possibilidade de serem as
fundações privadas a prosseguir interesses sociais, utilizando o direito
privado com todas as suas vantagens. De facto, as fundações públicas e privadas
têm semelhantes traços de regime, o que constitui um argumento a favor da proibição
das fundações públicas sob forma privada: basicamente, se se quer as vantagens
de direito privado, deixar-se-ia que os interesses sociais fossem prosseguidos
pelas fundações privadas; se o Estado entendesse que havia um “buraco” que
necessitasse de preenchimento – uma qualquer necessidade pública que não
estivesse a ser assegurada devidamente por nenhuma fundação privada -, poderia
recorrer às fundações públicas de direito público. Aliás, a Administração
exerce algum controlo sob as fundações privadas, como, por exemplo, no acto de
reconhecimento, onde a Administração terá de apreciar a licitude do fim, a
suficiência do património e a organização adequada. Para além deste caso, a
Administração interfere também na elaboração de estatutos (artº187 CC),
modificação dos estatutos (artº189 CC), transformação da fundação (artº190 CC)
e na sua extinção (artº193 CC).
Outra questão prende-se com o que acontece às fundações públicas de
direito privado já existentes. Ao exigir a adaptação dos estatutos dessas
fundações, o legislador está como que a assinar a sentença de morte dessas
mesmas entidades – pelo menos tal como até agora existiam -, já que existem
inúmeras remissões da LQF para a LQIP. Caso disso é, por exemplo, o artº9/7
LQF, onde se dispõe que as fundações públicas (sob forma pública ou forma
privada) estão sujeitas ao regime de gestão económico-financeira e patrimonial
previstos na LQIP. Outro exemplo é o artº53 LQF. Ou seja: o que dantes eram dois
regimes diferentes – e que forneciam critério ao instituidor para escolher
entre uma das duas formas – hoje tornou-se praticamente o mesmo regime (o da
LQIP). Por outras palavras: para além da proibição da criação de novas
fundações públicas de direito privado, as fundações públicas de direito privado
já existentes terão de adaptar os seus estatutos aos preceitos da LQIP, que
regiam primariamente apenas as fundações públicas de direito público. A
acrescentar a isto, parece haver uma contradição legal entre o artº3/4 da LQIP
e o nº 1 e 2 do artº57 LQF: para já, como referido, o artº57/1 LQF proíbe a
criação de novas fundações públicas de direito privado, o que parece contrariar
a permissão dada pelo artº3/4 LQIP; depois, o nº2 do artº57 LQF, ao mandar aplicar
o disposto no capítulo anterior (referente às fundações públicas no geral, que
por sua vez remete inúmeras vezes para a LQIP), parece contrariar o disposto no
artº3/4 LQIP - este artigo estatui expressamente que as fundações públicas de
direito privado não são abrangidas por esta Lei. Para além disto, cumpre fazer
uma referência ao artº48 da LQF, que sujeita as fundações públicas de direito
privado aos princípios administrativos gerais assim como a regras específicas
que, à primeira vista, parecem invalidar as vantagens da utilização de direito
privado (como é o caso da aplicação das regras da contratação pública).
Como
conseguinte, há quem sugira que as fundações públicas de direito privado sejam
integradas na categoria das fundações públicas stricto sensu. Este ponto relaciona-se também com a questão que
emerge da criação de fundações públicas de direito público como única forma
actualmente permitida ao Estado. Assim, a questão que cabe resolver para dar
resposta a estes dois pontos é: será que
as fundações públicas de direito público são suficientes para prosseguir
eficazmente o interesse público? Prima
facie, surge uma vantagem: a utilização de direito público fundamenta a
existência de uma relação jurídico-administrativa, pelo que os actos praticados
pela fundação pública de direito público seriam inquestionavelmente impugnáveis,
conferido uma maior protecção do particular. Contudo, como foi referido acima,
é necessária uma reforma do direito público, e, in casu, do regime aplicável às fundações de direito público. A
actual LQF nem permitiu que se aplicasse direito privado nem direito público
melhorado; simplesmente proibiu as fundações públicas de direito privado. Assim,
não deveria o legislador ter concretizado o que acima foi referido como a
posição defendida por vários autores – nomeadamente o Prof. Freitas do Amaral –
e criado um regime de direito público melhorado para fundações públicas? Na
minha opinião, sim. Se até agora o Estado escolhia o direito privado como forma
de actuação fundacional, então tal significa que o regime das fundações
públicas de direito público não é apelativo o suficiente. Tendo o legislador
proibido a criação de novas fundações públicas de direito privado, o Estado
viu-se impedido de utilizar a sua “forma preferida”; parece necessária a
melhoria do actual regime de fundações públicas, sendo agora o único a que o
Estado pode recorrer.
Surge, ainda, finalmente, uma
última questão relacionada com esta temática: qual será, então, o motivo justificante da proibição de criação de
fundações públicas de direito privado? Ou seja, por outras palavras, por
que é que o legislador de 2012 considera que o paradigma fundacional deve ser a
fundação pública de direito público?
Antes de mais, cumpre realçar que
existem fundações públicas de direito privado que têm um bom desenvolvimento e
funcionamento, como é o caso – como referiu o prof. Pereira da Silva na aula
teórica – do Teatro S. Carlos ou do Centro Cultural de Belém. Portanto, o
argumento de que como algumas fundações públicas de direito privado serão
extintas por não prosseguirem os fins eficazmente e, portanto, a utilização de
direito privado não seria justificável, não procede; a parte não se pode
aplicar ao todo.
A revisão da legislação
fundacional é um projecto já iniciado há alguns anos; porém, o processo pode
ter-se acelerado como consequência da conjuntura sócio-económica, como se pode
ver reflectido nos pontos 3.4. e 3.5. do Memorando de Entendimento do Governo
português com a Troika. A medida do artº57 LQF entende-se, talvez, do ponto de vista
da necessidade a que se assiste actualmente de reduzir a orgânica da
Administração Pública. Contudo, surge um contra-argumento: é ressalvado no
parecer da Associação Nacional de Municípios relativo a esta questão que a
melhor medida anti-crise seria a existência de fundações públicas sob forma
privada, já que, muitas vezes, as pessoas colectivas de direito público não têm
verbas suficientes para prosseguir os fins que necessitam prosseguir. No
parecer, é também dito que, neste contexto e segundo esta lógica, faria mais
sentido proibir as fundações públicas de direito público do que as de direito
privado, já que, nas primeiras, o património provém exclusivamente da(s)
pessoa(s) colectiva(s) pública(s) instituidora(s) e, nas segundas, visto que é
permitida a afectação de património de entidades privadas, há uma maior ajuda
que muitas vezes se revela crucial.
De facto, o legislador mudou o
paradigma que tinha escolhido em 1999 (com a Lei 169/99, onde se permitia a uma
parte da Administração Pública – os municípios – a criação de fundações
públicas de estatuto privado). Sucede que, aí, julgava-se que ao copiar modelos
de direito privado, copiar-se-ia também o sucesso do direito privado. Desde
então – depois da experiência das fundações públicas de direito privado -, o
legislador parece ter-se apercebido que, apesar da flexibilidade e da ajuda
financeira trazida pelo emprego de meios privados e da parceria com entes
privados na criação de fundações públicas (sendo este o tal argumento referido
pela Associação Nacional de Municípios), respectivamente, há certos princípios
de direito público que não são conciliáveis com certos princípios de direito
privado. Um exemplo disso – exemplo esse dado nas aulas práticas – é o caso da
cessação de contrato por interesse público; o direito privado não prevê um caso
onde uma das partes cesse o contrato por motivos de prossecução do interesse
público; ora, esse é o objectivo último da Administração. Como é possível ver
através do artº9, a LQF tem um âmbito de tornar mais transparente a actuação
fundacional. Será que daqui se pode retirar outro dos motivos que justifiquem a
proibição das fundações públicas de direito privado? Parece-nos que sim. De
facto, como já foi referido diversas vezes – mas que nunca é demais realçar -,
a Administração Pública prossegue o interesse público; prende-se com princípios
de legalidade e seus derivados, como a transparência do procedimento. É
necessário um maior controlo sobre a actuação privada nas entidades públicas,
exactamente por estas entidades fazerem parte da Administração. Não se pode
pretender o “melhor de dois mundos”: há que se entender que uma fundação
pública está adstrita a determinados limites relacionados com a idoneidade da
actuação da própria Administração, limites esses que não se encontram numa fundação
privada (que aplica direito privado).
Concluindo, é facto que o direito
público – em especial o direito administrativo – tem como objectivo último a
prossecução do interesse público: aquilo que, na perspectiva do legislador, é o
melhor para o Estado-comunidade. Toda a actuação administrativa se orienta (ou
deveria orientar-se) para esse fim último. No direito privado, o critério é
outro: o direito privado tem propósitos finais egoísticos, visando resolver
questões entre particulares e determinar a prevalência de um desses interesses.
Assim, na prossecução do interesse público, dever-se-á, em última análise,
utilizar direito privado que - apesar de ser certo que tem menos limitações
burocráticas (e outras) do que o direito público – não foi desenhado para tal? Se
de facto a utilização de direito privado começou a generalizar-se, não se podia
admitir a continuação deste fenómeno. Para além disto, o legislador
apercebeu-se que a utilização de meios privados por entes públicos nunca seria
tão eficaz como a utilização de meios privados por entes privados, pois os
entes públicos estão adstritos a princípios administrativos que, de certa
forma, lhes restringem a liberdade de actuação, sacrificando-a por outros
valores: a prossecução do interesse público. Poderia equacionar-se se a
proibição não terá sido uma solução demasiado radical; afinal, o que no fundo
se pretende é realçar que o direito privado não é conciliável com alguns dos
princípios de direito público e que, portanto, não deve ser utilizado de modo a
“atropelar” todos os entraves jurídico-públicos que, apesar de possivelmente
inconvenientes, têm razão de ser. A solução ideal passa certamente por uma
reforma do direito administrativo, tendente à desburocratização e
flexibilização dos meios jurídico-públicos. O que se quer salientar é que o direito
administrativo, o direito da Administração Pública, tem na sua raiz histórica o
controlo do poder e da arbitrariedade por parte do Estado, domando-o e
moldando-o à prossecução do interesse público. Com isto não se significa que o
particular esteja desprotegido e não desempenhe qualquer papel de relevo; de
facto, as correntes mais recentes defensoras da relação jurídico-administrativa
e da teoria da norma de protecção contrariam essa afirmação. Assim, e para
terminar, na minha opinião, se se estiver perante uma escolha entre o 8 ou o 80
– isto é, entre a continuação da permissão de criação de fundações públicas sob
forma privada ou a proibição da criação dessas mesmas fundações -, deve-se
optar pela segunda opção (apesar de se assumir que o modo como esta opção foi
tomada pelo legislador pode não ter sido o melhor). Isto porque - como foi
referido -, para além de não se justificar, do ponto de vista da eficiência, a
utilização de meios privados por entidades públicas no campo fundacional
(poder-se-á justificar melhor no campo empresarial, onde o direito privado está
sem dúvida melhor adaptado a toda a construção e organização da empresa em torno
da competitividade), deve ter-se em conta que há interesses últimos para os
quais o direito privado não foi concebido. O direito público – ainda que, sem a
necessária reforma, continue pesado, mais burocrático e, porventura, menos
eficiente que o direito privado – deve continuar a ser aplicado nas fundações
públicas, sem possibilidade de se usarem estratagemas de fuga a mecanismos que
foram desenhados com vista à protecção do interesse público.
Madalena Narciso, nº22091
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