quarta-feira, 28 de novembro de 2012


Teoria da Impermeabilidade jurídica da pessoa colectiva:

Tendo nós já estudado a organização administrativa, isto é, como é que na prática está estruturada (administração directa, indirecta, autónoma e independente) e que órgãos é que a compreendem, resta perceber como é que na teoria se concebe a organização administrativa – os seus elementos, os sistemas existentes e os princípios orientadores.
No presente texto referir-me-ei apenas a um dos elementos da teoria da organização administrativa: às pessoas colectivas e aos seus órgãos, procurando explicar a teoria da impermeabilidade jurídica e a porquê de hoje já não ter aplicabilidade.

Por “pessoa colectiva pública” entende-se “pessoas colectivas criadas por iniciativa pública para assegurar a prossecução necessária de interesses públicos, e por isso dotadas em nome próprio de poderes e deveres públicos” (Professor Diogo Freitas do Amaral).
Já os órgãos são os centros de formação e imputação da vontade da pessoa colectiva.

A questão que vos trago prende-se com o facto de se discutir se são de considerar jurídicas ou ajurídicas as relações que se estabelecem dentro da pessoa colectiva.
A primeira tese (em termos cronológicos) foi a designada “teoria da impermeabilidade jurídica, formulada por Georg Jellinek, que, nas palavras do Prof. Pedro Gonçalves, defende o carácter unitário e indivisível da personalidade jurídica pública e entende as relações intra-orgânicas como relações da pessoa colectiva consigo mesma.
Jellinek recusava-se a admitir a possibilidade de existência de relações internas dentro da mesma pessoa colectiva, pois isso era aceitar que na mesma haveria vários órgãos que formavam a sua vontade, ou seja, que numa personalidade jurídica una (construída à semelhança da pessoa singular, em que à partida só haverá uma vontade) era possível ter várias vontades, por vezes contraditórias, existindo a possibilidade de serem impugnadas internamente (pelos órgãos da mesma).
Lembro que é da opinião de vários autores, entre eles Marcelo Caetano, que a personalidade jurídica é fictícia, quer a dos indivíduos, quer a das pessoas colectivas, assim como a própria pessoa colectiva. Mas mesmo que só se aceitasse que só a pessoa colectiva é fictícia, estando no campo de ficções não vejo o porquê de não se aceitar a relativização da pessoa colectiva.

A partir dos anos 50 esta teoria começou a ser contestada principalmente por duas razões:

 - Se na administração do Estado liberal deparávamo-nos apenas com uma pessoa colectiva pública, o Estado, (há quem diga que o “fisco” era outra…) com o processo da descentralização (e com o surgimento de uma Administração prestadora [Estado Social]) surgiram administração indirecta e autónoma, abrangendo ambas várias pessoas colectivas públicas (sob a forma púbica ou, mais recentemente, sob a forma privada) que prosseguiam também o interesse público ou interesse próprio local;
 - Para além de se terem criado várias pessoas colectivas públicas estas passaram a conter, na sua maioria, não só um órgão, mas vários que, refere o Professor Pedro Gonçalves, embora prosseguindo o que foi definido como interesse público, podem as suas actuações (definidas com base nas suas competências), por vezes, não se compatibilizar ou harmonizar, ou pode um órgão extravasar o âmbito da sua competência, ingerindo-se na de outro.

Pelas razões apontadas, a teoria da impermeabilidade jurídica deixou de ser capaz de explicar estes novos fenómenos, passando-se a aceitar que a existência de relações dentro da mesma pessoa colectiva – relações inter-orgânicas – se encontrava no espaço pertencente ao Direito, sendo, como tal, jurídicas.
Surgia assim um novo ramo do Direito Administrativo (se é que assim lhe posso chamar), um direito que rege as relações internas (as que se estabelecem entre os órgãos da mesma pessoa colectiva), a par daquele que rege as relações externas (as relações que a Administração estabelece com os particulares ou mesmo com outras pessoas colectivas públicas).

A conceber relações internas entres os órgãos poderíamos cair no outro extremo, os órgãos das pessoas colectivas, teriam também personalidade jurídica. É esta a conclusão a que chega uma autor italiano (Salvatore Foderaro), se bem que a personalidade jurídica que o autor reconhece aos órgãos é limitada, já que perante a pessoa colectiva à qual o órgão pertence e face a terceiros (sejam eles particulares ou outras pessoas colectivas públicas ou privadas) esta não existe. Somente face aos outros órgãos da mesma pessoa colectiva é que é possível falar em personalidade jurídica do órgão.

A solução diferente, chega o Professor Pedro Gonçalves: afirmando que os órgãos são sujeitos de direito, isto é, “sujeitos de ordenação e imputação final (não apenas transitória) de poderes e deveres”. Para o autor, o facto de reconhecer certas entidades como sujeitos aos quais é possível imputar direitos e deveres não é sinónimo de atribuição de personalidade jurídica, “pois que a subjectividade jurídica pode existir em substratos despersonalizados”.
De facto até em direito privado encontramos sujeitos com capacidade mas sem personalidade, é o caso das associações não reconhecidas às quais o CC reconhece nos artigos 196º a 198º um fundo comum, similar a um património próprio da associação.
Mas também em direito público é possível achá-los: Vital Moreira, refere que apesar de certos organismos não estarem dotados de personalidade jurídica, podem ter autonomia orgânica, financeira, administrativa e até uma certa autonomia de decisão. Como consequência, por expressa determinação legal têm um “património especialmente afecto, pessoal adstrito, capacidade judiciária, orçamento, contas e receitas próprias, uma esfera de acção própria” e a possibilidade de praticar actos administrativos definitivos.
“Em certo sentido, tais organismos funcionam como se tivessem individualidade própria”- (Vital Moreira).
Também a doutrina alemã, como chamam a atenção os Professores Vasco Pereira da Silva (aulas teóricas), Pedro Gonçalves e Vital Moreira, distingue capacidade de personalidade.
Partindo desta construção os órgão não têm personalidade jurídica (conceito que perde operatividade), mas sim capacidade jurídica parcial, querendo significar que os órgãos:

 - só são titulares de poderes e deveres que lhes sejam especificamente atribuídos pela Ordem jurídica;
 - e que a sua capacidade é meramente interna, “uma vez que são titulares de poderes e deveres apenas em face de outros órgãos da mesma pessoa colectiva”. (para efeitos o art.4º/1 j) ETAF)

Desta forma, a partir de 2004, é possível que órgãos de uma pessoa colectiva impugnem actos de outra pessoa colectiva, por via do artigo 4º/1 alínea j) do ETAF que estatui o  seguinte:

“Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
(…)
 j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir”

Mas já antes (a partir da década de 80) a ordem jurídica portuguesa permitia ao particular impugnar actos de um órgão de uma pessoa colectiva.

Assim há então que separar:
1.      A possibilidade de serem os órgãos de uma pessoa colectiva a impugnar os actos de outros órgãos da mesma;
2.      A possibilidade do particular impugnar o acto praticado pelo órgão da pessoa colectiva.

Quanto ao primeiro ponto há ainda a dizer o seguinte:
Está regulado no art.4º/1 alinea j) do ETAF, e 10º/6 do CPTA (sobre a legitimidade passiva nos litígios – “Nos processos respeitantes a litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva, a acção é proposta contra o órgão cuja conduta deu origem ao litígio”), que qualquer litígio ou qualquer conduta que o provoque permite aos órgãos recorrerem judicialmente, o que engloba quer acções quer omissões.
Os litígios que ocorrem podem ser triangulares ou bipolares/dialógicos. Os primeiros surgem quando o acto de um órgão está direccionado para um terceiro, mas um outro órgão da mesma pessoa colectiva reclama que é sua a competência para praticar tal acto (são os chamados conflitos positivos de competência); ou quando, para que um acto direccionado a um terceiro seja eficaz ou válido, é necessária a actuação conjunta de dois ou mais órgãos e um deles se recusa a colaborar. Os segundos surgem exclusivamente entre os órgãos da mesma pessoa colectiva onde se estabelecem relações de supremacia ou de cooperação.
Os únicos órgãos que podem recorrer, de acordo com a interpretação que Professor Pedro Gonçalves faz o art.4º/1 j) do ETAF são aqueles que são titulares de direitos subjectivos, que se caracterizam por:

·     Serem independentes, no sentido de não pertencerem a nenhuma estrutura hierárquica, pois nesse caso os litígios que surgissem seriam resolvidos por decisão do superior hierárquico;
·         Prosseguirem interesses que sejam tutelados pela ordem jurídica como interesses próprios do órgão e que correspondem a interesses específicos de uma determinada(s) categoria(s) de pessoa(s).

Este direito subjectivo de que são titulares determinados órgãos é um direito ao exercício da sua competência (direito a que faça uso desta sem qualquer impedimento ou perturbações ilegítimas provocadas por outros órgãos); e cujo âmbito de eficácia é meramente interno – o direito de um órgão face a outro órgão da mesma pessoa colectiva.

Chama a atenção o Professor Domingos Farinho que esta possibilidade não se coaduna com a principal razão da relativização da pessoa colectiva, já que esta teve como causa principal a necessidade de assegurar a protecção dos direitos dos particulares.
Na realidade o facto de um órgão da mesma pessoa colectiva poder impugnar actos de um outro órgão da mesma pessoa colectiva, ao invés de proteger o particular, pode prejudica-lo: se o particular tinha já adquirido algo por via de um acto administrativo que posteriormente é impugnado, vê-se ou pode ver-se despojado do que tinha já adquirido.
O preceito visa assegurar o direito do órgão ao exercício da sua competência, na perspectiva do Professor Pedro Gonçalves; mas também assegurar o princípio da legalidade que, julgo, embora naquela situação possa não beneficiar o particular, prosseguirá o interesse público, no sentido de que este está também interessado que a legalidade seja observada.

Quanto ao segundo ponto:
A meu ver, se esta teoria que relativiza o conceito de pessoa colectiva pública e subjectiviza toda a administração, pode ter como desvantagem uma possível perda de eficácia, face à construção da impermeabilidade jurídica, já que os procedimentos que têm de ser atendidos pelos órgãos são imperativos, poderão tornar mais demorada a actuação da Administração, nem por isso deixa de ser mais positiva.
Como refere o Professor Domingos Farinho, seguiu-se esta via para a PROTECÇÃO DO PARTICULAR, que de facto está mais assegurada agora:
Obrigando a Administração, nas suas relações internas, a actuar num espaço regulado pelo Direito e não totalmente desregulado juridicamente (não quer dizer que não houvessem talvez normas informais que indicassem aos órgãos como agir), o particular tem agora a certeza que a actuação dos órgãos da pessoa colectiva são legítimos e legais, sabendo a que órgão é que se tem de se dirigir se quiser ver satisfeita alguma necessidade sua, ou se quiser impugnar um acto do mesmo.

Concluindo, o facto de se ter ultrapassado a impermeabilidade jurídica da pessoa colectiva, permitiu vir proteger o particular numa dupla vertente: este é protegido por poder questionar ou impugnar o acto do órgão (colocando a questão ao próprio autor do acto); e é-o também, embora não tão directamente, a meu ver, quando o ETAF, no art.4º/1 j), permite órgãos impugnarem actos de órgãos da mesma pessoa colectiva, assegurando o princípio da legalidade.

Ana Catarina Melícia, nº 21921

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