Enquanto pensava sobre o que é que poderia escrever e comentar, deparei-me com um caso real entre um órgão de administração pública (Biblioteca Nacional Portuguesa - BNP) e um particular.
Resumidamente, a BNP exerceu um direito legal de preferência para adquirir três bens bibliográficos, que tinham sido adquiridos em leilão pelo tal particular. Até aqui nada de mal. Porém, o particular deparou-se com uma lei de bases sobre o património cultural, na qual vem referido a necessidade de os bens necessitarem de estar classificados ou em vias de classificação para que a BNP possa exercer o seu direito. Este processo de classificação está presente na lei de bases, podendo a BNP dar origem ao mesmo se pretender e se o bem em causa preencher os requisitos necessários, conforme expresso na lei.
A BNP, em sua defesa, afirma não ser necessário esta classificação, pois a sua lei orgânica atribui um exercício de direito de preferência genérico e que o interesse público justifica o pontual e selectivo exercício desse direito.
O Tribunal Administrativo concordou com a BNP.
Cabe-me agora fazer um comentário:
Em primeiro
lugar, penso que nos deparamos com um caso em que há um choque entre o
interesse público e o interesse particular. Por um lado, o Estado pretende
obter determinados bens que considera serem importantes para o património
cultural; por outro, os particulares não querem abdicar do seu direito de
adquirir os bens em causa. Na minha opinião, se há interesse público na
obtenção dos bens, penso que o Estado deve ter os meios necessários e
suficientes para os adquirir. Porém, como vimos esse não é o problema, pois
esses meios existem. Assim, o Estado deveria ter cumprido o processo previsto
na lei de modo a evitar problemas posteriores.
Ora acontece que
o Estado apesar de saber que dispunha dos meios necessários para adquirir os
bens, não os praticou. Preferiu exercer um direito, não respeitando as
“regras”. É neste ponto que chocam os interesses. Penso que o interesse público
deve prevalecer, mas não pode “atropelar” os particulares como se nada fosse,
não pode ser exercido sem qualquer critério, não pode estar submetido à simples
vontade dos representantes do Estado. Se houve a preocupação de legislar
determinadas matérias, é porque certamente se pretendeu salvaguardar todos os
interesses e prevenir eventuais abusos.
Concluindo esta
primeira apreciação, acho importante sublinhar que os representantes do Estado
tinham conhecimento da legislação e dos mecanismos próprios para poderem
exercer o direito, mas ignoraram-nos. Este comportamento transmite uma sensação
de que o Estado é intocável, que pode agir segundo a sua livre e espontânea
vontade sobre o argumento de cumprir o “interesse publico”. Leva-nos a supor
que na prática vigora um sistema objectivista da administração pública,
concedendo poderes ilimitados à actuação pública. Mas a jurisprudência tem
afirmado que a solução equilibrada se encontra num “meio termo” entre o
objectivismo e o subjectivismo, pelo que o comportamento do Estado não terá
sido apropriado neste caso, pois agiu sem respeito das leis, ignorando-as e
ignorando os interesses dos particulares. Tudo isto, culmina com a sentença que
dá razão ao Estado. A decisão, parece-me, vem provocar uma enorme insegurança
jurídica (aliás a argumentação da acusação refere fortemente este ponto), uma
vez que permite que o Estado actue sem qualquer respeito pelas leis, que ignore
os mecanismos de que dispõe e vem confirmar que o interesse público se sobrepõe
ao dos particulares, não seguindo qualquer outro critério que o da simples
vontade dos representantes dos seus órgãos.
A decisão do
Tribunal Administrativo em não impugnar os actos da BNP, pode acarretar alguns
perigos, nomeadamente o de permitir o livre exercício do direito de preferência
(e outros direitos que possam existir) por parte dos órgãos representativos do
Estado. Permite também que estes mesmos órgãos desprezem os mecanismos
impostos, não os cumpram. E não me refiro só a este caso específico. Corre-se o
risco de este exemplo abranger outros órgãos da administração directa do Estado
noutras áreas, encorajando-os a procederem segundo a sua casuística e
unilateral vontade.
P.s - O trabalho está também publicado neste blog, mas é bastante mais extenso. Aqui fica um resumo e o meu comentário. Quem tiver dúvidas ou simples curiosidade pode abrir e ler pois estará mais desenvolvido.
P.s - O trabalho está também publicado neste blog, mas é bastante mais extenso. Aqui fica um resumo e o meu comentário. Quem tiver dúvidas ou simples curiosidade pode abrir e ler pois estará mais desenvolvido.
Gonçalo Cabral de Moncada
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