segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Relações administrativas multilaterais



Relações administrativas multilaterais

No seguimento da teoria da norma de protecção, que consagrava a existência de verdadeiras relações jurídico-administrativas, trouxe-vos o tema das relações administrativas multilaterais, multipolais ou poligonais.
A figura reside no facto de, no exercício da função administrativo, ser necessário considerar os interesses de um particular que não aquele destinatário imediato do acto administrativo, nomeadamente a autorização administrativa. A  Administração e os diferentes particulares envolvem-se então numa rede de ligações jurídicas, de que resultam direitos e deveres recíprocos, que implicam por sua vez a participação de diferentes particulares e autoridades administrativas, cada um situada em pólos distintos dessas mesmas relações.
       As relações administrativas plurilaterais foram o resultado de uma evolução sofrida pelas relações administrativas bilaterais (que consignavam de um lado os poderes públicos administrativos, e os cidadãos por outro lado, destinatários directos de actos administrativos) face ao alargamento dos direitos subjectivos públicos com base nos direitos fundamentais e da moderna Administração prestadora e constitutiva que é a função administrativa hoje do Estado. Citando o Professor Vasco Pereira da Silva, que por sua vez cita H. Bauer, “a confrontação da Administração com estruturas de interesses multipolares conduziu à relativização da tradicional concepção relação bilateral entre a Administração e “um” cidadão, mostrando que o Direito Administrativo de hoje já não pode ser mais concebido como um “direito da colisão” entre interesses públicos e privados, mas sim como uma espécie de “direito da distribuição” entre interesses privados perante a Administração Pública”. Não apenas tendo presente a existência de um particular cujos direitos precisam de ser tomados em consideração, a Administração Pública procura a realização de um “equilíbrio entre posições jurídicas individuais contrapostas”. Esses particulares passam do plano de meros terceiros em face da Administração para um plano em que ocupam um pólo autónomo da relação jurídica multilateral. Desta forma, os seus direitos e deveres precisam de ser incluídos nesta relação, juntamente com os do “primeiro” particular e da Administração.
      Podemos afirmar também que esta perspectiva surgiu face ao fracasso da doutrina do acto administrativo de eficácia dupla, da doutrina alemã, por não conseguir representar totalmente os fenómenos jurídico-administrativos emergentes. De uma forma geral, o acto administrativo de eficácia dupla ou de duplo efeito, desenvolvido por Laubinger, tem como ponto de partida uma autorização de construção que, além de ter por imediato destinatário o dono da obra, atinge outro direito subjectivo privado, o do vizinho.
     Contudo, esta teoria falha porque não é capaz de apreender a existência de direitos e deveres tanto anteriores ao acto administrativo (v.g. o direito de participação do vizinho no procedimento administrativo, o dever da Administração de levar em conta na sua decisão tanto a posição jurídica do requerente da autorização como a do vizinho) como posteriores (o direito do vizinho a que o Administração fiscalize a realização da construção autorizada, e o dever da Administração de actuar caso a autorização não seja respeitada ou não cumprida), ou até mesmo quando a autorização não exista sequer (o caso das construções clandestinas). O acto administrativo não esgota nem confunde-se com a relação administrativa multilateral; é sim um momento dessa relação e uma das formas de relacionamento entre os particulares e a Administração – deve ser enquadrado enquanto facto criador, modificador ou extintivo dessa relação. Citando novamente o Professor Vasco, “É o próprio direito aplicável e a constelação dos interesses em jogo, que implica que o acto administrativo seja de eficácia múltipla, e não a eficácia do acto que determina a necessidade de ter em atenção os interesses de pessoas distintas dos imediatos destinatários.”
     Voltando ao conceito base, dou um exemplo do Direito do Ambiente e do Urbanismo, áreas em que a relação administrativa multilateral tem uma maior presença:
·         Quanto ao primeiro, o conhecido exemplo do “pescador chalupa” – a Administração concede a uma indústria poluente uma autorização administrativa ilegal. Num dos pólos da relação, encontra-se a autoridade licenciadora; num outro, o dono da fábrica, requerente do licenciamento, destinatário do acto. Outro sujeito é o pescador, que foi lesado nos seus direitos fundamentais, tanto por residir naquela zona, sofrendo graves consequências de saúde, como sendo prejudicado pela poluição no rio que irá afectar a sua pesca. Todos estes membros estão envolvidos numa teia de múltiplas ligações que adveio da autorização administrativa. É de notar que não precisa de se tratar de um acto administrativo ilegal para que haja uma relação administrativo multilateral, bastando somente um acto administrativo que tenha como destinatário um particular, em que seja preciso considerar os direitos e deveres de outro particular indirectamente afectado.  Neste caso, a empresa tem uma vantagem e o pescador um prejuízo directamente relacionado com a actividade da empresa. Apesar da lógica poluidor-pagador, fazendo com que o custo individual ultrapasse o custo social, o pescador fica desprotegido.
·         Relativamente ao Direito do Urbanismo, o caso paradigmático é o da autorização de construção – uma das entidades é a Administração, outra o requerente da construção, e ainda outra o vizinho, que surge como figura autónoma desta teia de relações, tendo um direito de defesa contra a atribuição da autorização.

Nestes dois casos, tem-se presente que as vantagens da empresa poluente e do dono da obra não são possíveis sem que hajam prejuízos para os demais vizinhos ou pescador; estas condicionam-se reciprocamente. Os vizinhos podem então intentar as chamadas “acções jurídico-públicas de vizinhança”. É importante referir que o que os estes pretendem afastar, impugnar, não é a actuação do dono da obra, mas sim a licença, a autorização, que se trata de um acto de autoridade do Estado. Não contestam o empresário, mas o Estado que autorizou o particular a agir. Os afectados não agem contra o titular da licença, mas sim contra a atribuição da licença administrativa.
É interessante referir que as relações de vizinhança são então reguladas tanto pelo Direito Civil como pelo Direito Administrativo. O primeiro ocupa-se exclusivamente do problema do relacionamento entre vizinhos, enquanto que o último considera tanto os interesses dos sujeitos privados (mas somente aqueles que dizem respeito a actuações ou omissões administrativas), como os interesses públicos (que a Administração prossegue relativamente a todos e cada um deles).
A relação jurídica poligonal permite assim compreender todos os direitos subjectivos públicos em jogo, determiná-los adequadamente, ampliando o seu campo de visão de apenas um único particular participante. Através de uma nova consideração da relação jurídica, permite também uma nova consideração dos direitos subjectivos públicos, que por sua vez são mais eficazmente protegidos através do seu âmbito alargado e da sua vasta consideração. 

Filipe Rodrigues

Um comentário:

  1. Como se definiria a relação entre interna de uma empresa entre o setor que libera verba e o setor responsável pelas relações comerciais da empresa

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