Relações administrativas multilaterais
No seguimento da teoria da norma de protecção, que consagrava
a existência de verdadeiras relações jurídico-administrativas, trouxe-vos o
tema das relações administrativas multilaterais, multipolais ou poligonais.
A figura reside no facto de, no exercício da função
administrativo, ser necessário considerar os interesses de um particular que
não aquele destinatário imediato do acto administrativo, nomeadamente a
autorização administrativa. A Administração e os diferentes particulares
envolvem-se então numa rede de ligações jurídicas, de que resultam direitos e
deveres recíprocos, que implicam por sua vez a participação de diferentes
particulares e autoridades administrativas, cada um situada em pólos distintos
dessas mesmas relações.
As relações administrativas
plurilaterais foram o resultado de uma evolução sofrida pelas relações
administrativas bilaterais (que consignavam de um lado os poderes públicos
administrativos, e os cidadãos por outro lado, destinatários directos de actos
administrativos) face ao alargamento dos direitos subjectivos públicos com base
nos direitos fundamentais e da moderna Administração prestadora e constitutiva
que é a função administrativa hoje do Estado. Citando o Professor Vasco Pereira
da Silva, que por sua vez cita H. Bauer, “a confrontação da Administração com
estruturas de interesses multipolares conduziu à relativização da tradicional
concepção relação bilateral entre a Administração e “um” cidadão, mostrando que
o Direito Administrativo de hoje já não pode ser mais concebido como um
“direito da colisão” entre interesses públicos e privados, mas sim como uma
espécie de “direito da distribuição” entre interesses privados perante a
Administração Pública”. Não apenas tendo presente a existência de um particular
cujos direitos precisam de ser tomados em consideração, a Administração Pública
procura a realização de um “equilíbrio entre posições jurídicas individuais
contrapostas”. Esses particulares passam do plano de meros terceiros em face da
Administração para um plano em que ocupam um pólo autónomo da relação jurídica
multilateral. Desta forma, os seus direitos e deveres precisam de ser incluídos
nesta relação, juntamente com os do “primeiro” particular e da Administração.
Podemos afirmar também que esta
perspectiva surgiu face ao fracasso da doutrina do acto administrativo de
eficácia dupla, da doutrina alemã, por não conseguir representar totalmente os
fenómenos jurídico-administrativos emergentes. De uma forma geral, o acto
administrativo de eficácia dupla ou de duplo efeito, desenvolvido por
Laubinger, tem como ponto de partida uma autorização de construção que, além de
ter por imediato destinatário o dono da obra, atinge outro direito subjectivo
privado, o do vizinho.
Contudo, esta teoria falha
porque não é capaz de apreender a existência de direitos e deveres tanto
anteriores ao acto administrativo (v.g. o direito de participação do vizinho no
procedimento administrativo, o dever da Administração de levar em conta na sua
decisão tanto a posição jurídica do requerente da autorização como a do
vizinho) como posteriores (o direito do vizinho a que o Administração fiscalize
a realização da construção autorizada, e o dever da Administração de actuar
caso a autorização não seja respeitada ou não cumprida), ou até mesmo quando a
autorização não exista sequer (o caso das construções clandestinas). O acto
administrativo não esgota nem confunde-se com a relação administrativa
multilateral; é sim um momento dessa relação e uma das formas de relacionamento
entre os particulares e a Administração – deve ser enquadrado enquanto facto
criador, modificador ou extintivo dessa relação. Citando novamente o Professor
Vasco, “É o próprio direito aplicável e a constelação dos interesses em jogo,
que implica que o acto administrativo seja de eficácia múltipla, e não a
eficácia do acto que determina a necessidade de ter em atenção os interesses de
pessoas distintas dos imediatos destinatários.”
Voltando ao conceito base, dou
um exemplo do Direito do Ambiente e do Urbanismo, áreas em que a relação
administrativa multilateral tem uma maior presença:
·
Quanto ao primeiro, o conhecido exemplo do
“pescador chalupa” – a Administração concede a uma indústria poluente uma
autorização administrativa ilegal. Num dos pólos da relação, encontra-se a
autoridade licenciadora; num outro, o dono da fábrica, requerente do
licenciamento, destinatário do acto. Outro sujeito é o pescador, que foi lesado
nos seus direitos fundamentais, tanto por residir naquela zona, sofrendo graves
consequências de saúde, como sendo prejudicado pela poluição no rio que irá
afectar a sua pesca. Todos estes membros estão envolvidos numa teia de
múltiplas ligações que adveio da autorização administrativa. É de notar que não
precisa de se tratar de um acto administrativo ilegal para que haja uma relação
administrativo multilateral, bastando somente um acto administrativo que tenha
como destinatário um particular, em que seja preciso considerar os direitos e
deveres de outro particular indirectamente afectado. Neste caso, a empresa tem uma vantagem e o
pescador um prejuízo directamente relacionado com a actividade da empresa.
Apesar da lógica poluidor-pagador, fazendo com que o custo individual ultrapasse
o custo social, o pescador fica desprotegido.
·
Relativamente ao Direito do Urbanismo, o caso
paradigmático é o da autorização de construção – uma das entidades é a
Administração, outra o requerente da construção, e ainda outra o vizinho, que
surge como figura autónoma desta teia de relações, tendo um direito de defesa
contra a atribuição da autorização.
Nestes dois casos,
tem-se presente que as vantagens da empresa poluente e do dono da obra não são
possíveis sem que hajam prejuízos para os demais vizinhos ou pescador; estas
condicionam-se reciprocamente. Os vizinhos podem então intentar as chamadas “acções
jurídico-públicas de vizinhança”. É importante referir que o que os estes
pretendem afastar, impugnar, não é a actuação do dono da obra, mas sim a
licença, a autorização, que se trata de um acto de autoridade do Estado. Não
contestam o empresário, mas o Estado que autorizou o particular a agir. Os
afectados não agem contra o titular da licença, mas sim contra a atribuição da
licença administrativa.
É interessante referir
que as relações de vizinhança são então reguladas tanto pelo Direito Civil como
pelo Direito Administrativo. O primeiro ocupa-se exclusivamente do problema do
relacionamento entre vizinhos, enquanto que o último considera tanto os
interesses dos sujeitos privados (mas somente aqueles que dizem respeito a
actuações ou omissões administrativas), como os interesses públicos (que a
Administração prossegue relativamente a todos e cada um deles).
A relação jurídica poligonal permite assim compreender todos os direitos subjectivos públicos em
jogo, determiná-los adequadamente, ampliando o seu campo de visão de apenas um
único particular participante. Através de uma nova consideração da relação
jurídica, permite também uma nova consideração dos direitos subjectivos
públicos, que por sua vez são mais eficazmente protegidos através do seu âmbito
alargado e da sua vasta consideração.
Filipe Rodrigues
Como se definiria a relação entre interna de uma empresa entre o setor que libera verba e o setor responsável pelas relações comerciais da empresa
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